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Avó Cool

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Meninos refugiados, estrelas errantes

Há uns anos acompanhei a jovem Lalla ao longo das páginas de “Deserto”, um livro excecional do escritor Le Clézio. Neste agosto li do autor, Nobel da Literatura 2008, “Estrela Errante”. São obras belíssimas, mas de desassossego, onde a narrativa nos leva ao coração acelerado de quem demasiado cedo perde quase tudo.

Há dias o P3 (jornal Público) publicou o trabalho Crianças refugiadas fotografam o “inferno” onde vivem às portas da Europa. Convida-nos a percorrer a galeria de imagens captadas por meninos/jovens no campo de refugiados na ilha de Samos, na Grécia. Como é dado a ler, “têm entre 12 e 17 anos. Nasceram à hora certa no local errado – um país ou cidade onde, invariavelmente, predomina a pobreza, a opressão ou a guerra”.

Mais de mil crianças vivem neste campo de refugiados, em condições deploráveis. São mais de mil crianças que vão alimentando a esperança possível olhando para o mar. Cada uma delas poderia ser Lalla de “Deserto”, fugida de África, ou as personagens de “Estrela Errante”: Esther, a menina judia que na Segunda Guerra Mundial por pouco escapa aos nazis e leva anos até chegar a Israel, ou Nejma, a palestiniana encaminhada para um campo que cheira a morte depois de ser obrigada a deixar a sua cidade. São os dois lados de uma mesma história. E é um passado que continua a ser presente.

“Estamos há tanto tempo prisioneiros neste campo que tenho dificuldade em recordar como era dantes” – escreve Le Clézio no início de um capítulo atribuído a Nejma. É ficção, mas é a realidade. Pela narrativa poética do “escritor da rutura”, considerado pela Academia sueca “o explorador de uma humanidade dentro e fora da civilização dominante”, chega-se também ao coração de todos os meninos refugiados da atualidade.

Escrevo a partir de uma cidade bonita e segura, sentada no escritório da minha casa. Apesar de ter sonhos ainda por cumprir, a verdade é que tenho mais do que o essencial. No entanto, caso se abatesse uma guerra sobre Portugal, não teria liquidez para fugir e recomeçar facilmente noutro lugar bonito e seguro. Provavelmente, seria uma refugiada num qualquer campo, lado a lado com crianças igualmente deslocadas que passariam a ter as mãos cheias de nada.

Eu sei que é mais fácil criticar e argumentar quando os refugiados dão à costa aos milhares a muitos quilómetros de distância de nós, mas ignorar o seu sofrimento, não manter vivo em nós esse sofrimento, é perder essa humanidade que Le Clézio nos quis expor e que um artigo no P3 nos comunica.

O escritor dedicou “Estrela Errante” às “crianças capturadas”, de sonhos presos, vidas em suspenso. E elas continuam por esse mundo, sob tantas formas de captura. São estrelinhas em errância, sem direito de opção. Pensemos nelas.

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(Foto: “Irmão mais novo”, por Sadegh (14 anos). Imagem inscrita na galeria de imagens divulgadas no P3)

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