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Avó Cool

Avó Cool

Eu não quero o dinheiro da Matilde

Não conheço os pais que em desespero apelaram à solidariedade dos portugueses para salvarem a filha bebé com atrofia muscular espinhal, mas confio mais na sua boa-vontade do que num Estado que não conseguiu dispersar a nublosa sobre o destino dos donativos para as vítimas dos incêndios em Pedrógão Grande.

Fui uma dos milhares de pessoas que doaram dinheiro para a conta destinada a angariar os dois milhões de euros que custa o Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo e a esperança de vida para a pequena Matilde. E não quero esse dinheiro de volta.

Miseravelmente, o Estado deixou crescer esta onda de solidariedade e deixou um jovem casal reunir a verba necessária para custear o medicamento apenas comercializado nos EUA para depois informar que assumiria a despesa (não só com Matilde, mas também com a Natália). Ainda bem que o fez, obviamente. Mas fê-lo depois de a conta em nome da Matilde reunir mais de dois milhões e meio de euros, uma verba extraordinária que mostra o bom que existe em nós, o povo.

O medicamento foi já administrado à criança e os seus pais vieram há dias informar sobre o que têm feito com o dinheiro de uma conta encerrada a 19 de julho. Para o casal, é um novo turbilhão de desassossego, com a desconfiança a espreitar de todas as esquinas, mas também uma oportunidade para ajudar outras Matildes e suas famílias. Isto dá-me paz e sentido de justiça.

Surgem agora as notícias de que os doadores para esta conta podem pedir o seu dinheiro de volta. Não posso falar por quem fez alguma doação, mas posso questionar: para quê pedir o reembolso? Sabemos que o mundo está cheio de oportunistas, mas alguém duvida que este dinheiro será bem gerido por um casal cujo rosto está em todos os jornais, que mais não quis do que salvar a filha e que canalizou já ajuda financeira para outras crianças doentes? Alguma vez desejaria este casal tamanha responsabilidade? Ou pensará ele comprar uma segunda casa para férias, como aconteceu em Pedrógão Grande?

A conta da Matilde é supervisionada, não há qualquer margem para o oportunismo; todas os movimentos serão forçosamente escrutinados, esta sim, uma situação incomum num país onde reina a impunidade.

Meninos refugiados, estrelas errantes

Há uns anos acompanhei a jovem Lalla ao longo das páginas de “Deserto”, um livro excecional do escritor Le Clézio. Neste agosto li do autor, Nobel da Literatura 2008, “Estrela Errante”. São obras belíssimas, mas de desassossego, onde a narrativa nos leva ao coração acelerado de quem demasiado cedo perde quase tudo.

Há dias o P3 (jornal Público) publicou o trabalho Crianças refugiadas fotografam o “inferno” onde vivem às portas da Europa. Convida-nos a percorrer a galeria de imagens captadas por meninos/jovens no campo de refugiados na ilha de Samos, na Grécia. Como é dado a ler, “têm entre 12 e 17 anos. Nasceram à hora certa no local errado – um país ou cidade onde, invariavelmente, predomina a pobreza, a opressão ou a guerra”.

Mais de mil crianças vivem neste campo de refugiados, em condições deploráveis. São mais de mil crianças que vão alimentando a esperança possível olhando para o mar. Cada uma delas poderia ser Lalla de “Deserto”, fugida de África, ou as personagens de “Estrela Errante”: Esther, a menina judia que na Segunda Guerra Mundial por pouco escapa aos nazis e leva anos até chegar a Israel, ou Nejma, a palestiniana encaminhada para um campo que cheira a morte depois de ser obrigada a deixar a sua cidade. São os dois lados de uma mesma história. E é um passado que continua a ser presente.

“Estamos há tanto tempo prisioneiros neste campo que tenho dificuldade em recordar como era dantes” – escreve Le Clézio no início de um capítulo atribuído a Nejma. É ficção, mas é a realidade. Pela narrativa poética do “escritor da rutura”, considerado pela Academia sueca “o explorador de uma humanidade dentro e fora da civilização dominante”, chega-se também ao coração de todos os meninos refugiados da atualidade.

Escrevo a partir de uma cidade bonita e segura, sentada no escritório da minha casa. Apesar de ter sonhos ainda por cumprir, a verdade é que tenho mais do que o essencial. No entanto, caso se abatesse uma guerra sobre Portugal, não teria liquidez para fugir e recomeçar facilmente noutro lugar bonito e seguro. Provavelmente, seria uma refugiada num qualquer campo, lado a lado com crianças igualmente deslocadas que passariam a ter as mãos cheias de nada.

Eu sei que é mais fácil criticar e argumentar quando os refugiados dão à costa aos milhares a muitos quilómetros de distância de nós, mas ignorar o seu sofrimento, não manter vivo em nós esse sofrimento, é perder essa humanidade que Le Clézio nos quis expor e que um artigo no P3 nos comunica.

O escritor dedicou “Estrela Errante” às “crianças capturadas”, de sonhos presos, vidas em suspenso. E elas continuam por esse mundo, sob tantas formas de captura. São estrelinhas em errância, sem direito de opção. Pensemos nelas.

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(Foto: “Irmão mais novo”, por Sadegh (14 anos). Imagem inscrita na galeria de imagens divulgadas no P3)

Pela Amazónia, cada gota faz o mar

Sentimos impotência perante o que se está a passar na Amazónia e perguntamo-nos o que podemos fazer. Sem que possamos deitar água sobre o fogo, sugiro que pensemos na velha máxima: cada gota faz um oceano (de mudança).

Aproveitando o desafio Follow Friday, sugiro por isso o blogue busy as a bee on a rainy day. Não seria necessário acontecer a tragédia descontrolada que está a acontecer do outro lado do Atlântico para sugerir este “cantinho” do Sapo Blogs, onde a autora manifesta sensibilidade pelo que se passa à sua volta numa escrita escorreita, feita de palavras essenciais, atenta às grandes questões globais e aos detalhes dos dias.

Foi nesta “abelhinha” que encontrei os links para um abaixo-assinado que está a correr o mundo.

Sim, sentimo-nos impotentes. Mas também podemos fazer algo. E podemos fazer muito, indo aos gestos diários de consumo. Ficam algumas sugestões:

- Banir ou pelo menos reduzir o consumo de carne bovina importada da América Latina, por tudo o que se sabe sobre o peso tremendo desta indústria nas alterações climáticas e na desflorestação da Amazónia;

- Banir ou pelo menos consumir menos produtos com soja ou óleo de palma, outras culturas que estão a roubar terreno à floresta (vejam os rótulos das bolachas, dos cremes de barrar o pão, etc.);

- Rejeitar o mobiliário construído com madeiras exóticas, optando por madeiras europeias de origem certificada.

Estas sugestões foram deixadas por um amigo nas redes sociais. Se tiverem mais, por favor divulguem. Cada gota vale.

Sair da engrenagem

A minha avó gostava de ficar na sua casa quieta, dizia que escutava o silêncio. Moldou as horas ao seu tempo próprio. Estava certa porque era tudo certo ali, no mundo que criara e que organizava diariamente, cumprindo as tarefas domésticas com o zelo de quem vai receber visitas. Cozinhava ao almoço e ao jantar, punha a mesa para uma, varria o chão, limpava as divisões, cuidava do jardim. Para o exterior, seria uma velha “parada” já sem mão na escrita dos seus últimos capítulos de vida. Ah, mentira… Andamos confundidos sobre o que é parar.

Foi-nos inculcado que temos de dar provas do nosso trabalho, que sem ele andamos por aqui a tecer. Obviamente que trabalhar é importante e necessário, mas sair da formatada “vida ativa” (conceito de risco, cerceador das possibilidades) é também abrir a porta a uma existência plena – e em qualquer idade.

Temos medo de parar por acharmos que ficamos a dever algo à sociedade. Deixamo-nos invadir pela culpa por estarmos a respirar fora da engrenagem, quando parar pode ser exatamente a oportunidade de reinvenção de nós e do exemplo que damos aos outros.

Quem se entrega à meditação não está parado; no seu coração entende estar a fazer muito mais por si e pelo mundo.

Quem contempla a natureza e se dá tempo para a descoberta de suaves impressões (encanta-me a beleza do termo “serendipidade”) não está parado; entra num estado de harmonia que emana uma energia de união com o todo.

Quem lê um livro, ouve uma música ou finalmente resolve pintar não está parado; viaja por todos os lugares.

Quem sai do “mercado de trabalho” para se redescobrir em novas tarefas não está parado; cumpre um desígnio, um apelo e um plano que lhe estava destinado.

Há dias acabei de ler “Cavalos Roubados”, de Per Petterson. Um homem de 67 anos, viúvo, abandona Oslo, vende a sua empresa e vai viver sozinho para junto de um lago nas montanhas. Fica este trecho:

“Agora o tempo é para mim, digo-me. Não que deva passar depressa ou devagar, mas que seja apenas tempo, que seja algo no interior do qual viva e que possa preencher com coisas físicas e atividades através das quais o possa dividir, de modo a que cresça e que seja diferente para mim e que não desapareça quando eu não estiver a olhar”.

Este homem não está parado. O mundo sim, pensa que parou. Somente saiu da engrenagem.

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Os novos 50

Esta ideia de que os 50 são os novos 40 tem o seu quê de maléfico. Subjacente ao seu lado sombrio está uma ditadura implacável de elegância e frescura que pressiona a mulher a enfiar o pé no sapato da Cinderela, doa o que doer. De repente, o que pode parecer uma evolução torna-se num retrocesso.

Dobrar o meio século é uma espécie de vitória amarga. Chega-se ali à esquina após uma já longa prova de endurance e o corpo começa a mostrar que não se vai para nova. Estando-se nas tintas para o aumento da esperança de vida, a menopausa chega nos timings da velha guarda. O metabolismo altera-se, os quilinhos a mais e o inchaço na barriga tentam ficar, as rugas ganham terreno. Neste processo inexorável, onde fica então a beleza? Onde a mulher quiser. Agora sim, entramos na parte deliciosa que é ter alguma idade.

Contrariando as revistas, as estrelas do showbiz que desafiam a gravidade a todo o custo e o marketing furioso que vende tudo o que promete lutar contra o tempo, somos livres para gritar alto-e-para-o-baile, que agora quem decide sou eu: e eu declaro que os meus 50 não querem ser os novos 40; não têm necessidade de pedir licença para serem exatamente como são, cheios do bom e do… menos bom (porque para viver há que comprar o pacote inteiro).

Sim, há mudanças no modo como hoje se está nos “entas”. É um facto que as nossas mães e avós não tinham as oportunidades que hoje nos são apresentadas; os modos de socialização eram distintos e os horizontes, em muitos casos, bem mais estreitos. Mas daí a sentir-se a necessidade de obliterar a quantidade de anos, por muitos que sejam, é dar corda ao preconceito. Se há alguma forma de apresentar a diferença da nossa para as anteriores gerações, diga-se simplesmente: estou nos novos 50. Não são 49+1, são mesmo 50. E quando forem 59+1, é sinal de que entro em glória nos 60. Ou vamos chamar aos 60 os novos 50? Aos 70 os novos 60? Por favor…

 

#50anos