Ato de contrição
Tal como nós nomeamos épocas e povos do passado sem lhes reconhecer os matizes, as contracorrentes, no futuro é possível que sejamos chamados Os Reles.
Pior do que sermos mal julgados é o julgamento revelar o quão mau somos. E nós temos sido maus. Nós, os filhos do século XX. Nós, os que nas últimas décadas temos usado e destruído a Natureza como se não houvesse amanhã. Se isso não dá arrependimento já, chamarem-nos depois reles é pouco.
Como povo, afirmo que os governos devem fazer muito mais, que o mundo está dominado por interesses económicos e jogos de poder estratosféricos. Como povo, lamento o excesso de poluição que a sociedade gera, o monstro do plástico, o desmatamento das florestas, as culturas intensivas, a tremenda pegada ecológica das indústrias e dos transportes, enfim, todos os fenómenos de lesa-natureza. Como povo, assusta-me o aquecimento global e apavoram-me os relatórios que mostram como estamos no caminho errado. Ainda hoje, a ONU alertou-nos para a formação em curso do “apartheid climático”.
Como povo, no entanto, o que estou a fazer para mitigar os estragos, reparar as feridas da Terra? Não basta separar o lixo e enviar as embalagens para a reciclagem, ou fechar a água enquanto se lava os dentes. Não chega acusar, pedir mais medidas e ficar à margem da solução, na vidinha de sempre, a procurar passar por entre os pingos de chuva. É preciso agir. É preciso ter vergonha e fazer um ato de contrição diante dos jovens que exigem grandes mudanças. É essencial ser parte interessada, 100% comprometida, na transformação que nos é pedida, o que significa avaliar cada atitude de consumo, ser mais radical na proteção dos recursos naturais. Rejeitar embalagens de plástico (porque reciclar é manifestamente pouco), rejeitar alimentos que correm meio planeta para chegar até nós, consumir menos carne, privilegiar os produtos de higiene biodegradáveis, comprar menos roupa e menos tudo, participar em ações de limpeza da natureza ou de reflorestação, envolver-se em fóruns e movimentos sobre estas temáticas e abrir os olhos à informação são alguns exemplos do que está ao meu alcance.
Há dois anos, falava eu sobre este assunto num jantar quando um dos presentes largou a pérola: “Preocupas-te tanto com o futuro do mundo porquê? Daqui a 100 anos já não estarás cá…” Que triste comentário, que argumento pobre, que merda de pensamento! Não sei até que ponto temos tempo para não ficarmos na história como o povo reles, mas eu opto por ser a reles arrependida, saída da toca.